Furando o cerco ao combate e cerceamento dos ritos culturais e religiosos praticados por escravos e seus descendentes, os Afoxés são pioneiros da africanização do carnaval de Salvador. Em 1975, pouco mais de duas dezenas de tambores e de 100 componentes do bloco afro Ilê Aiyê, pioneiro do movimento de re-africanização do carnaval, desfilam pela primeira vez. Anunciam a chegada do povo preto e recomendam banho de piche aos brancos que queiram acessar o valor dos pretos. “Bloco racista, nota destoante” brada o Jornal A Tarde no dia seguinte, à época voz e expressão do poder político e econômico na Bahia. Desde então, o carnaval de Salvador, reconhecido como patrimônio imaterial, de influências ibérico-barroco católicas, indígenas e africanas, torna-se o maior do mundo. No universo de suas atrações, os blocos afro e afoxés, apesar da falta de apoio oficial, formam expressivo eixo identitário, em uma cidade cuja população negra representa, em 2023, mais de 80% do total, e vivencia segregações socioculturais e espaciais marcantes. O Ilê nasce com o ideário de combate ao racismo, sob o manto protetor da ialorixá, mãe Hilda, no Curuzu, bairro da Liberdade. Uma das chaves de sua formação vira graças a grupos que requalificam, com sua trajetória nos anos 1970, a palavra ‘brau’, tornando-a DNA de negros com autoestima elevada. Outra chave vem de grupos que cultuam a mama África e o movimento dos pretos estadunidenses por direitos civis e políticos, o black power. Outra ainda vira por trânsito intercultural (Estados Unidos, África e bairros negros e populares de Salvador) de diferentes estéticas, sintetizadas no samba afro. Fazendo-se caldeirão estético, musical e político impregnado de dendê, o Ilê firma-se como porta voz de um sistema positivo de representação, de luta, de transformação, de ressignificação e de preservação da cultura afrodescente do povo preto de Salvador.